domingo, 20 de setembro de 2020

REALIDADE MÁGICA - PARTE 2 - O MÁGICO - CAPÍTULO 3

 


                     REALIDADE MÁGICA –  LIVRO 1 

                            PARTE 2 – (Capítulo 3)

                                     O MÁGICO 


Fui para casa e não conseguia dormir. Pareceu-me uma eternidade esperar pelo dia seguinte. Levantei bem cedo e, girando o anel, transportei-me para a árvore de Crisélia. Intrigada, ela comentou:

 

– Ontem, depois que você saiu, não resisti e fui ao quarto de Anabel para testar a magia do espelho. Ele me mostrava tudo, menos Eliel. Para não acordá-la, resolvi trazer o espelho para a sala. Eu estava disposta a não desistir até conseguir vê-lo. Para a minha surpresa, no momento em que retirei o espelho do quarto, o rosto de Eliel surgiu imediatamente, e eu pude observá-lo como antes. Agora eu tenho certeza: Eliel não criou uma barreira para mim e sim para Anabel. Mas a pergunta é: por que ele a estaria evitando se desejava encontrá-la? Essa é uma pergunta que somente ele poderá responder. Empreste-me o anel para que eu possa ir à casa de Eliel.

 

Entreguei o anel a Crisélia, e ela desapareceu num piscar de olhos. Sentei e decidi esperar até que retornasse. Não passou tempo algum, e Anabel entrou na sala abraçada a um livro. Surpresa com a minha presença, perguntou:

 

– Quem é você? Onde está Crisélia?

 

Para não assustá-la, respondi ternamente:

 

– Nós já nos conhecemos. Meu nome é Felizardo. Crisélia saiu para fazer compras.

 

Ela riu antes de comentar:

 

– Crisélia mentiu para você. Ela não compra nada. Tudo o que ela quer simplesmente aparece. Você também é mágico?

 

Aventurei-me a dizer:

 

– Não. Mas conheço alguém que é. Seu nome é Eliel.

 

Ela exclamou tristemente:

 

– Eliel! Por que, ao ouvir e repetir esse nome, eu sinto o coração apertado? Ele pode me enfeitiçar?

 

Respondi sorrindo:

 

– Ele já a enfeitiçou, e você também conseguiu enfeitiçá-lo. Ele está apaixonado por você e pediu-me para levá-la até ele.

 

Desconfiada, Anabel exclamou:

 

– É mentira! Se ele gostasse de mim, estaria aqui. Por que ele não veio?

 

Lembrei-me do bloquinho de anotações em meu bolso. Eu o abri e li para ela as poucas palavras que Eliel utilizou para compor sua história: “Em muitas florestas, existe sempre uma única árvore, habitada pelo mesmo elfo que chora de saudade.”

 

Anabel exclamou:

 

– Eliel!… Agora eu me lembro!… O que houve?!… Onde ele está?!… Por favor, impeça Inocêncio de cortar a árvore de Eliel! Onde está Crisélia?! Ela sempre me protege. Você não pode dizer a ninguém que estou aqui. Eu tenho medo. Onde está Crisélia?

 

O encantamento inicial deu lugar ao desencanto e eu, sem saber o que fazer, abracei-a para confortá-la. Com a intenção de ajudá-la a esquecer de sua desventura por alguns minutos, sugeri:

 

– Leia uma história para mim. O seu livro parece muito interessante.

 

Os olhos de Anabel brilharam quando ela perguntou:

 

– Você também gosta de contar histórias?

 

Respondi satisfeito:

 

– Certamente. Essa é a minha profissão.

 

Orgulhosa de si mesma, ela comentou:

 

– Antes eu tinha que memorizar as histórias porque eu não sabia ler e escrever. Depois que Crisélia ensinou-me, passei a fazer anotações e ficou mais fácil lembrá-las. Também comecei a ler muitos livros, e isso aumentou muito o meu repertório. O que me entristece é não ter ninguém a quem contá-las.

 

Para animá-la, eu disse:

 

– Pode contá-las para mim.

 

FIM DO TERCEIRO CAPÍTULO

Sisi Marques

20/09/2020


C O N T I N U A . . .

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

REALIDADE MÁGICA – PARTE 2 – O MÁGICO - CAPÍTULO 2

 

                       REALIDADE MÁGICA –  LIVRO 1 

                            PARTE 2 – (Capítulo 2)

                                     O MÁGICO 


Graças à generosidade de Eliel, conheci muitos lugares que jamais caberiam no meu orçamento. Durante as apresentações que realizei em uma cidadezinha, havia uma jovem que me olhava com insistência e não perdia uma das minhas sessões. Eu pensava: “Se ela me enviasse um sinal qualquer, eu ficaria felicíssimo.”

 

Certo dia, eu estava no banco de um jardim, preso em um desses devaneios causados pela lembrança do olhar da bela jovem, quando algo saltou em meu bolso. Sorri ao lembrar-me de Eliel. Ele certamente preocupava-se com a minha demora. Entretanto, um calafrio percorreu a minha espinha no momento em que retirei o cartão do bolso e li as palavras: “Gire o anel em sentido horário e encontre-se comigo em minha árvore.” Não poderia tratar-se de Eliel porque, para encontrá-lo, eu teria que girar o anel em sentido contrário. Seria Crisélia?! Um pavor imenso apoderou-se de mim. Seria ela a jovem pela qual eu, inadvertidamente, me apaixonara?!

 

Eu estava confuso e pensava em retornar à casa de Eliel para contar-lhe o ocorrido quando uma ligeira esperança surgiu com o pensamento: “Talvez a dona do bilhete não seja a dona do meu coração.” Levantei, olhei ao redor e verifiquei que não havia ninguém me observando… Desejei estar na árvore de Crisélia, fechei os olhos, girei o anel e lá estava eu. Senti-me aliviado quando uma jovem, que eu nunca vira antes, assustou-se e perguntou:

 

– Quem é você? Como ousa invadir a minha privacidade? Não vê que eu me preparava para repousar?

 

Eu disse sem rodeios:

 

– Lamento se cheguei num momento inoportuno, mas foi você quem me convidou a vir. Vamos logo ao que interessa: onde está Anabel?

 

A jovem empalideceu, e eu quase perdi o equilíbrio quando a ouvi afirmar:

 

– Eu sou Anabel. E você, quem é?

 

Ainda não refeito da surpresa, balbuciei:

 

– Ninguém. Quero dizer, ninguém que você conheça. Meu nome é Felizardo; sou amigo de Eliel. É ele quem está à sua procura.

 

Ela sorriu tristemente antes de dizer:

 

– Eu não conheço o seu amigo e duvido que haja alguém procurando por mim. Já faz tanto tempo que estou aqui sem ver ninguém além de Crisélia!… Como é o mundo lá fora?

 

Desejando estar na árvore de Eliel, segurei a mão de Anabel, fechei os olhos e girei o anel antes de responder:

 

– Você descobrirá por si mesma.

 

Abri os olhos, e ela perguntou assustada:

 

– O que está fazendo?!… Largue a minha mão!

 

Nervoso, chutei algo que estava no caminho enquanto exclamava:

 

– Não deu certo! Aquela bruxa sabia que eu não conseguiria, e foi só por esse motivo que permitiu que eu me aproximasse!

 

Surpreendi-me ao ouvir uma voz melodiosa dizer pausadamente:

 

– Não sou a vilã dessa história. Eu também desejava que você conseguisse levá-la até Eliel.

 

Perguntei em tom ríspido:

 

– Se não é mesmo uma bruxa, por que manteve esta jovem prisioneira por mais de sessenta anos?

 

Lamentei as minhas palavras pela reação que provocaram em Anabel. A lembrança de sua desventura retornou à sua mente, e ela entregou-se a um choro convulsivo. Dando-lhe algo para beber, Crisélia perguntou-me:

 

– Está satisfeito?!… Viu só o que conseguiu fazer à pobrezinha? Tive que lhe dar novamente a poção do esquecimento.

 

Enlouquecido, exclamei:

 

– Que poção é essa?!… Como consegue conviver com a sua consciência?!…

 

O olhar de Crisélia atravessou-me como uma lança. A pedido dela, saímos do quarto de Anabel e nos dirigimos à sala. Convidando-me a sentar, ela disse:

 

– Não se preocupe com a saúde de Anabel, porque a poção não é tóxica. Ela adormecerá rapidamente e, quando acordar, não se lembrará de sua desagradável visita.

 

Depois, olhando-me com desprezo, ela prosseguiu tecendo ofensas:

 

– Humano, satisfaça a minha curiosidade: o que Eliel prometeu-lhe em troca de ajudá-lo a localizar Anabel? Teria ele encontrado novamente a Fonte da Juventude?… Quanto pretende conseguir por sua preciosa água?

 

Levantei-me. Procurando manter a calma, disse:

 

– Não estou preocupado com o que possa pensar a meu respeito. A mente é sua; envenene-a o quanto quiser. Contos de fada são mais fáceis de ser contados do que vividos. O meu único desejo é que a história de Eliel e Anabel tenha um final feliz.

 

Ela surpreendeu-me quando perguntou:

 

– E quanto a mim? Não se importa com os meus sentimentos? Não se importa com o final que a minha história possa ter?

 

Eu estava sem palavras. Importava-me sim e muitíssimo. Eu desejava que ela pudesse ter toda a felicidade que o seu coração almejasse. Entretanto, respondi simulando indiferença:

 

– A sua história terá um final desastroso se você continuar mantendo Anabel prisioneira.

 

Espargindo farpas de ironia, ela disse:

 

– Anabel não é minha prisioneira. Nunca foi. Eu só a estou protegendo. Por que me olha desse jeito? Não acredita em mim?

 

Respondi com firmeza:

 

– Não. Nada do que disser poderá inocentá-la. Nada poderá justificar a sua atitude em relação a Anabel.

 

Crisélia, revestindo-se de paciência, revelou:

 

– Ouça o que descobri depois que jurei vingar-me do meu irmão… Eu estava no encalço de Anabel para atraí-la para a minha árvore e dar uma pequena lição em Eliel quando, inesperadamente, eu a vi encontrar-se com Inocêncio, o homem que prometera amar-me eternamente. Escondi-me e fiquei petrificada ao ouvi-lo ameaçar cortar a árvore de Eliel, caso Anabel desperdiçasse a água da Fonte da Juventude em benefício próprio. No início, pensei que ele quisesse a água mágica para que pudéssemos realizar o nosso sonho, mas logo percebi que o sonho era somente meu. Inocêncio ousou colocar um preço naquela dádiva da natureza e já possuía um comprador. Ele estava furioso e insistia para que Anabel lhe entregasse o frasco. Ela negava que o objeto estivesse em seu poder. Ele estava irreconhecível, completamente fora de si!

 

Com o olhar distante, Crisélia prosseguiu:

 

– Anabel chorava, e eu tive que intervir. Para defendê-la, lancei um encantamento sobre os galhos de uma árvore próxima. Os galhos ganharam vida e seguraram-no para que eu conseguisse conduzi-la à minha árvore. Após refazer-se do susto, Anabel contou-me que Inocêncio, seu irmão, obrigou-a a contar tudo sobre Eliel, e ela acabou revelando a existência do frasco que continha a água da Fonte da Juventude. Após ouvi-la atentamente, pude concluir o restante da história: Inocêncio, para evitar que Anabel bebesse o precioso líquido, resolveu consegui-lo através de mim. Naquela época, devido à minha forte ligação com Eliel, nossas árvores deslocavam-se juntas para um novo lugar e permaneciam sempre próximas. Não foi difícil para Inocêncio, sem o conhecimento de Anabel, localizar a minha árvore e arquitetar uma aproximação. Ele parecia tão sincero, e eu caí em sua teia. Ele insistia em dizer que o seu maior desejo era tornar-se imortal para viver ao meu lado eternamente, e tinha a certeza de que eu pediria a Eliel que me entregasse a água da Fonte da Juventude para que eu pudesse ofertá-la a ele.

 

Aproveitei-me do momento em que Crisélia fez uma pausa para perguntar:

 

– O que tencionava fazer a Anabel antes de presenciar o inesperado encontro?

 

Crisélia respondeu:

 

– Eu pretendia escondê-la por alguns dias apenas para chatear Eliel. Amo o meu irmão e gosto de Anabel. Eu seria incapaz de magoá-los.

 

Algo estava errado. As peças daquele enorme quebra-cabeça não se encaixavam. Surpreendi-me ao ouvir Crisélia dizer:

 

– Também não consigo compreender por que Eliel e Anabel continuam separados. Desde aquele dia em que eu a trouxe para a minha árvore, não consegui mais entrar em contato com ele. Não consigo vê-lo no espelho. Não consigo localizar a sua árvore. Não consigo enviar-lhe uma mensagem. Quando você veio para este lugar, eu pude sentir que você, de alguma forma, carregava a magia de Eliel consigo. Desculpe-me por tê-lo julgado mal. Se Eliel confiou em você, é porque você certamente é digno de confiança. Aceitaria uma xícara de chá?

 

Eu sorri antes de responder:

 

– Sim, obrigado.

 

Enquanto Crisélia servia o chá, aproveitei a oportunidade para desculpar-me:

 

– Gostaria que você também me perdoasse pelas coisas horríveis que eu disse.

 

Sorrindo, ela perguntou:

 

– Ainda me considera uma bruxa?

 

Respondi:

 

– Não. Sinceramente eu gostaria de poder desfazer a má impressão que lhe causei. Eu sou apaixonado por histórias e posso garantir que fui atraído apenas pela magia.

 

Com um sorriso cativante, Crisélia disse:

 

– Espere só um minuto. Eu volto logo.

 

Fiquei esperando ansioso. Quando ela retornou, entregou-me um livro que, pelo aspecto, parecia muito antigo. Sorrindo, ela comentou:

 

– É mágico. As páginas dele mudam de acordo com o seu desejo. Pense em um tema, e a história aparecerá. Se não gostar de alguma parte, basta desejar que ela seja contada de outra forma. É seu. Espero que goste.

 

Eu estava encantado, e o prazer que senti ao folhear o livro fez com que ela também se alegrasse. A alegria de Crisélia trouxe paz ao meu coração, e eu encontrei apenas um modo de agradecer-lhe: levantei para abraçá-la. Tremi ao sentir que ela retribuía o meu abraço e não consegui resistir ao ímpeto de beijá-la. Desculpei-me em seguida. Eu estava terrivelmente embaraçado, e o meu embaraço parecia diverti-la. Naquele mesmo instante, tive uma intuição e disse:

 

– Guarde o livro para quando eu voltar.

 

Confusa, ela perguntou:

 

– Aonde você vai?

 

Girando o anel, respondi:

 

– Encontrar Eliel.

 

Ela disse:

 

– Não conseguirá. É melhor você…

 

Não pude ouvir o final da frase porque, em poucos segundos, eu estava na árvore de Eliel. Decepcionei-me ao encontrá-la vazia. Uma nova intuição ocorreu-me. Girei o anel e retornei à árvore de Crisélia. Surpresa, ela perguntou:

 

– Como você conseguiu? Eu pensei que houvesse algum tipo de bloqueio entre a árvore dele e a minha.

 

Arrisquei um palpite:

 

– Não há. Venha comigo. A árvore dele está vazia.

 

Usei o polegar da mão em que estava o anel para girá-lo e, com a outra mão, segurei a mão de Crisélia, exatamente como fizera ao tentar transportar Anabel. Ao nos encontrarmos no interior da árvore de Eliel, Crisélia exclamou:

 

– Não compreendo! Talvez a única explicação seja a ausência dele.

 

Aventurei-me a dizer:

 

– Isso nos dá uma vantagem. Na ausência de Eliel, talvez consigamos trazer Anabel.

 

Crisélia concordou, e voltamos para buscá-la.

 

Fizemos várias tentativas, mas todas infrutíferas. Crisélia comentou:

 

– Não faz sentido! Você sozinho não consegue levá-la. Eu não consigo levá-la. Nós dois juntos também não conseguimos. Eu lhe disse que havia um bloqueio. Só não imaginei que o bloqueio estivesse direcionado a Anabel.

 

Foi a minha vez de exclamar:

 

– Impossível! Ele a ama. Além disso, se o bloqueio fosse direcionado apenas a Anabel, não haveria motivo para que você não conseguisse mais observá-lo através do espelho. Onde está o espelho? Talvez agora você consiga ver Eliel. Alguma coisa pode ter mudado.

 

Crisélia ponderou:

 

– É melhor deixarmos para amanhã. O espelho está no quarto de Anabel, e eu não quero acordá-la. Você também precisa descansar.

 

FIM DO SEGUNDO CAPÍTULO

 

Sisi Marques

07/09/2020

 

C O N T I N U A . . .


sábado, 29 de agosto de 2020

REALIDADE MÁGICA - LIVRO 1 - PARTE 2 - O MÁGICO

 

                                   REALIDADE MÁGICA

                         PARTE 2 - CAPÍTULO 1

                                   O MÁGICO

 

O encontro inesperado e misterioso com Anastácio e as visitas que eu fazia àquela propriedade, onde respirávamos histórias e presenciávamos o seu desabrochar em forma de flores atraentes e perfumadas na manhã seguinte, representavam o passo maior que eu conseguira dar em relação à magia.

 

O meu coração sempre buscara algo que estivesse além desta realidade. As histórias que eu contava prazerosamente não bastavam para satisfazer a minha sede cada vez mais intensa de fantasia. Não se pode acreditar em algo que só existe na imaginação das pessoas. Contar histórias, sim. Acreditar nelas, não.

 

Quando eu era chamado para exercer o meu ofício de contador de histórias em festas infantis, sempre havia a oportunidade de assistir às apresentações dos mais diversos números de mágica. Para expressar a minha frustração em relação à mágica, criei uma teoria: “Há mágica na magia, mas não há magia na mágica.” Você dirá que também fabrico ilusões; entretanto, nas histórias, há magia e esperança.

 

Anos mais tarde, porém, fui obrigado a repensar a minha teoria de não haver magia na mágica. Meus olhos se abriram durante uma apresentação que, sem sombra de dúvida, era uma demonstração de magia. Não houve preparação alguma: ofereci-me para ser o assistente do mágico e posso assegurar que não houve preparação alguma. O que aparecia surgia do nada, e o que sumia ao nada voltava. Não havia uma caixa com fundo falso, cortinas, objetos escondidos nas mangas e nos bolsos… Não havia distrações… Não havia truques de espécie alguma… Havia apenas uma varinha que me deixava intrigado toda vez que se agitava no ar, embalada por palavras inaudíveis.

 

O mágico era de poucos amigos e de pouca conversa. Cheguei mesmo a considerá-lo arrogante e intratável. Apesar disso, o meu sonho de contemplar a magia na mágica realizava-se, e eu estava fascinado. A ocasião era uma festa de dez anos. Ele fez o seu trabalho, e eu fiz o meu. Mal conversamos, e ele foi embora sem se despedir. A pedido do aniversariante, eu fiquei um pouco mais para contar uma última história. Eu já estava de saída quando o menino comentou:

 

– O mágico esqueceu a cartola.

 

Reconheci a oportunidade e decidi aproveitá-la. Perguntei ao garoto o endereço do mágico e me ofereci para entregar-lhe o chapéu.

 

A casa do mágico ficava a dois quarteirões e não tinha nada de especial. O mágico não me agradeceu o favor. Apanhou a cartola e entrou, fechando a porta atrás de si. Eu fiquei parado feito uma estátua, pensando em sua falta de… Algo pulou em meu bolso e interrompeu o meu pensamento. Receoso, imaginando tratar-se de uma brincadeira de mau gosto dos meninos da festa, coloquei a mão no bolso para verificar o que era. Havia apenas um cartão com os dizeres: “Encontre-me na entrada da floresta à meia-noite.” Senti as pernas tremerem. Um sapo teria me causado menos pavor.

 

Passei o resto do dia imaginando como seria aquele encontro. Não consegui jantar. Eu sentia náusea só de pensar em atravessar a estrada para entrar na floresta. Gosto de florestas apenas nas histórias. Na vida real, porém, elas me dão calafrios. E por que à meia-noite?… Certamente aquele sujeito estava zombando de mim. “E se ele não aparecer?” Essa era a pergunta que eu fazia a mim mesmo já na entrada da floresta. Minhas pernas estavam bambas, e o meu coração quase saltou pela boca no momento em que ouvi o pio de uma coruja. Se o mágico não me tivesse segurado pelo braço, não me envergonho em dizer que teria saído correndo.

 

Um pouco mais calmo, ainda sentindo sua mão apertando o meu braço, virei a cabeça para certificar-me de que era ele realmente e exclamei:

 

– Pode me soltar! Combinamos de nos encontrar na estrada, e nada fará com que eu entre na floresta.

 

Com a nítida intenção de me aborrecer, ele disse:

 

– Não combinamos coisa alguma. Eu só lhe enviei uma mensagem. Você veio porque quis e poderá ir embora quando desejar. Agora, vai entrar ou vai continuar aí parado?

 

Eu fui obrigado a confessar:

 

– Florestas me dão calafrios especialmente à noite. Já ouvi e contei tantas histórias sobre florestas que, na minha imaginação, elas estão povoadas com todos os tipos de seres.

 

Para assustar-me ainda mais, ele disse em tom enigmático:

 

– Pois a sua imaginação não conhece a milésima parte deles. Não consegue ver os olhos curiosos e horrendos que nos espreitam por detrás das folhas? Há perigo e mistério em cada canto…

 

Ele não conseguiu continuar, porque começou a rir. Depois, retomando seu mau humor, perguntou irônico:

 

– Está decepcionado? Esperava que eu inventasse histórias para entretê-lo? Que espécie de contador de histórias é você? É uma pena eu não ter um espelho para você ver a cara que faz quando está com medo. Ou eu tenho?!… Veja só: apareceu um em meu bolso.

 

Odeio quando caçoam de mim. Para vingar-me de seu sarcasmo, eu disse:

 

– Também não estamos aqui para você exibir os seus truques.

 

Surpreendi-me quando o ouvi dizer:

 

– Você tem razão: estamos perdendo um tempo precioso. Siga-me; quero mostrar-lhe o meu verdadeiro lar.

 

Que verdadeiro lar seria aquele? Enquanto caminhávamos, folhas úmidas e galhos pontudos esbarravam no meu rosto e nas minhas roupas, e eu tremia com receio de me perder naquela escuridão. Quando dei por mim, estávamos diante de uma árvore que eu não conseguia enxergar, e teria ido de encontro a ela se ele não tivesse gritado:

 

– Pare. Há uma árvore enorme bem à sua frente. Sinta-a com as mãos. Contorne-a. Ela precisa conhecê-lo para deixá-lo entrar.

 

Aquilo mais parecia um ritual, e eu não saberia dizer quantas vezes fui obrigado a caminhar ao redor da árvore, abraçando-a, apalpando-a, até que, para o meu desespero, o meu braço ficou preso no tronco. Eu gritava feito louco:

 

– Meu braço! Árvore maldita, solte o meu braço!

 

Procurando acalmar-me, o mágico disse:

 

– Está tudo bem. Feche os olhos e entre. Ela aceitou a sua presença, e a barreira invisível já foi removida.

 

O mágico estava certo. Quando eu respirei profundamente e caminhei de encontro à árvore, ela não colocou a menor resistência. Ele também já estava dentro dela quando murmurei lentamente:

 

– Eu estou dentro da árvore! Nós estamos dentro da árvore! Como isso é possível?!

 

Ele exclamou com a maior naturalidade:

 

– O tronco é oco!

 

Revesti-me de impaciência ao exclamar:

 

– Não banque o espirituoso! A questão é: como atravessamos o tronco?

 

Ele respondeu calmamente:

 

– A minha árvore se abriu para que pudéssemos entrar. Está com fome? Siga-me. Cuidado com os degraus. Nos cômodos subterrâneos, há bastante iluminação, conforto e tranquilidade. Aqui não há nada a temer.

 

Cansado de esperar que eu me servisse da comida que estava sobre a mesa, ele disse:

 

– Eu deveria ter imaginado que o seu medo estragaria o seu apetite. Talvez consiga comer mais tarde. Também há algo em meu interior que me rouba o prazer de tudo, inclusive, de uma boa refeição.

 

Eu estava quieto demais, e o meu silêncio parecia incomodá-lo mais do que as minhas perguntas. Ele olhava para mim, imaginando que a minha curiosidade fosse jorrar a qualquer momento. Mas eu não conseguia raciocinar adequadamente: os meus pensamentos pareciam as argolas soltas de uma corrente que acabara de se quebrar. Não achei a menor graça quando ele comentou:

 

– A sua língua deve ter ficado do lado de fora. Caso contrário, você já teria me perguntado o que rouba o meu prazer.

 

Eu usei de toda a sinceridade quando disse:

 

– Não estou interessado. Só o que desejo saber é se conseguirei sair daqui algum dia.

 

Ele comentou:

 

– A minha árvore bem que poderia mantê-lo prisioneiro, porque você me diverte e olha que há décadas eu não me divertia tanto!

 

Mal-humorado, respondi:

 

– Ria! Pode se divertir o quanto quiser! Amanhã, quando o dia clarear, encontrarei um meio de sair daqui. E quer saber quem levará a melhor?

 

Surpreendi-me quando o ouvi exclamar:

 

– Crisélia!… Ela sempre leva a melhor, e restam apenas sete meses…

 

O mágico conseguira acender a minha curiosidade e sorriu tristemente quando me ouviu perguntar:

 

– Quem é Crisélia? Você a ama?

 

Com o olhar perdido em lembranças, ele afirmou:

 

– Muitíssimo, embora ela tenha jurado que Anabel e eu nunca mais tornaríamos a nos encontrar. Já se passaram sessenta e cinco anos, quatro meses e nove dias desde a última vez em que os meus olhos beberam da doçura dos olhos de Anabel.

 

Imagine só! Eu fiquei perdido, tentando repassar na minha mente o número de anos, meses e dias que o mágico mencionara. Tudo começou a fazer sentido: ele não era um mágico e sim um mago disfarçado. Lembrei-me dos sete meses e arrisquei a pergunta:

 

– Se já faz tanto tempo que estão separados, por que os próximos sete meses são tão relevantes?

 

O mago respondeu:

 

– Daqui a sete meses, a minha árvore mudará de lugar, e eu não sei aonde ela me levará. Isso sempre acontece. Ela não fica mais do que dezessete meses em um mesmo local. Por que continuar se Anabel não estará lá?… Ela nunca está. Não há esperança.

 

Sensibilizado com o seu sofrimento, perguntei:

 

– Por que não me diz como posso ajudá-lo? Você não teria me trazido aqui e exposto o seu segredo se não houvesse uma razão.

 

Ele exclamou:

 

– E não há! Talvez eu estivesse me sentindo muito solitário e precisasse desabafar com alguém!… Você não conseguiria compreender o tormento que é viver essa vida dupla: parte na floresta e parte com aquelas pessoas que mais parecem estar dormindo do que vivendo. O meu mundo é aqui, mas eu preciso visitar os povoados para encontrar Anabel. Se existe alguma possibilidade do meu plano funcionar, é bem remota.

 

Perguntei entre surpreso e receoso:

 

– Que plano?!… Não me diga que faço parte dele!

 

Ele afirmou:

 

– O sucesso do meu plano dependerá de seu empenho.

 

Exclamei:

 

– Você é maluco! Primeiro afirma que me trouxe para cá sem motivo; depois menciona um plano do qual eu faço parte, mas não tenho conhecimento algum!…

 

O mago, para confundir-me ainda mais, disse:

 

– Arquitetei um plano no qual você seria o instrumento que eu usaria para encontrar Anabel e trazê-la de volta. Agora vem a parte em que você acertou em cheio: sou maluco, o plano é inútil, e eu não deveria ter revelado o meu segredo.

 

Arrisquei afirmar:

 

– Modestamente, considero-me a sua melhor opção. Só não compreendo como poderia tornar-me um instrumento em sua busca.

 

Pela primeira vez, pude observar uma mudança no olhar e na expressão do mago. Ele parecia ter abandonado todas as máscaras e subterfúgios quando disse:

 

– Talvez eu não seja maluco, o meu plano não seja descartável, e trazê-lo aqui tenha sido a melhor decisão que já tomei. Meu nome é Eliel. Viaje para vários lugares e conte a minha história. Diga que, em muitas florestas, existe sempre uma única árvore, habitada pelo mesmo elfo que chora de saudade.

 

Embora eu tenha gostado muito, não consegui evitar a pergunta:

 

– É só isso?… Quero dizer, as pessoas desejarão saber como a história continua.

 

Balançando a cabeça em sinal de desacordo, ele declarou:

 

– É o suficiente. Agora precisamos dormir, mas antes terá que se alimentar.

 

Na manhã seguinte, acordei em um quarto que não era o meu, em uma casa que não era a minha e dentro de um pijama que igualmente não era meu. Pensei: “Se tudo não passou de um sonho, por que não estou em casa?” A resposta para o que estava acontecendo, entretanto, não tardou a aparecer. Eliel entrou no quarto, cumprimentou-me e abriu as cortinas. Perguntei-lhe:

 

– Onde estamos?

 

Ele respondeu:

 

– Na minha casa. Onde mais poderíamos estar? Lembre-se da frase de sabedoria: “Paredes têm ouvidos.” Pode apostar que elas têm mesmo. Certa vez, em um pequeno vilarejo, quase fui acusado de bruxaria devido às minhas frequentes incursões à floresta. Preciso ser discreto. Prefiro fazer a mágica debaixo do nariz deles a fazê-la às escondidas. Vá se vestir que o café já está pronto.

 

Após o desjejum, caminhamos até a praça. Tenho um hábito que é difícil de resistir: mal sentei no banco, retirei o bloquinho de anotações do bolso e a caneta. Pedi a ele:

 

– Conte-me uma história qualquer. Quem viveu durante tanto tempo deve ter muita coisa para contar.

 

Ele disse:

 

– Encontre Anabel, e ela lhe contará quantas histórias quiser. Anabel, antes de se apaixonar por mim e beber da Fonte da Juventude, adorava encantar as pessoas com suas histórias. Certa vez, eu estava passeando pelo parque e ouvi uma delas. Quando me aproximei para pedir-lhe que viesse morar comigo em minha árvore, ela se assustou e pediu-me tempo e paciência. Paciência eu tinha de sobra; tempo, porém, era algo do qual eu não dispunha. Entreguei a ela um pequeno frasco que continha o líquido mais precioso que alguém poderia sonhar em obter: a água mágica da Fonte da Juventude.

 

Após uma breve pausa, Eliel prosseguiu:

 

– Crisélia, minha irmã, preocupada com o meu bem-estar, costumava observar-me em seu espelho mágico. Ela procurou-me e disse que precisava do líquido para tornar imortal um jovem por quem se apaixonara. Neguei-lhe o pedido; e ela, quando viu em seu espelho que eu entregara o frasco a Anabel, revoltou-se e jurou nos separar. Anabel, dois dias antes do deslocamento da minha árvore, confessou-me o seu amor e bebeu o líquido que permitiria que ficasse jovem e bela para sempre. Com a intenção de despedir-se de seus familiares e tranquilizá-los quanto à sua partida, disse-me que se ausentaria por algumas horas e nunca mais retornou. Fiquei desesperado, mas não havia nada que eu pudesse fazer. O momento da partida chegou, e a minha árvore transportou-se para outro local. Eu jamais pensei que pudesse contar a minha história para alguém, especialmente, para um humano.

 

Não o interrompi, porque eu estava atônito. A história era verdadeira, e eu silenciosamente agradecia a ele por tê-la confidenciado a mim. Para quebrar o silêncio que se seguiu após ele terminar a narrativa, perguntei:

 

– Gostaria de tomar sorvete?

 

Eliel aceitou o convite. Depois da sorveteria, retornamos à sua casa, e ele entregou-me dois objetos enquanto dizia:

 

– Tanto o anel quanto a carteira foram confeccionados com fibras extraídas da casca da minha árvore. O anel poderá conduzi-lo aonde desejar, e a carteira conterá o dinheiro que precisar.

 

Aceitei os dois presentes alegremente, perguntando-me o que mais um homem poderia desejar; e Eliel, adivinhando os meus pensamentos, respondeu:

 

– Amor. Não há magia maior. Lembre-se de todos os lugares dos quais já ouviu falar, deseje conhecê-los, feche os olhos e gire o anel em sentido horário. Se desejar voltar para esta casa ou encontrar-me em minha árvore, gire o anel em sentido anti-horário. Quanto à carteira, poderá prover todas as suas despesas de alimentação, vestuário e moradia. Não economize; você merece o melhor. Basta imaginar a quantia, desejar obtê-la, fechar os olhos, abrir a carteira, e o dinheiro certamente estará lá. Alguma pergunta?

 

Com o semblante preocupado, comentei:

 

– Não poderei partir antes do final da semana, porque ainda tenho mais duas apresentações agendadas.

 

Fiquei surpreso quando o ouvi dizer:

 

– Faça o que tiver que fazer e, quando estiver disponível, arrume as malas e deixe que o vejam pegar o ônibus com destino a algum lugar. Só então comece a utilizar o anel e a carteira. Até o dia de sua partida, ficará hospedado em minha casa. E não me agradeça, porque só estou pensando em mim mesmo. Ser hospitaleiro e fazer amizade com um recém-chegado será muito bom para a minha reputação nesta vila.

 

FINAL DO 1º CAPÍTULO DA PARTE 2 (O MÁGICO) DE “REALIDADE MÁGICA – LIVRO 1”.

Sisi Marques

29/08/2020

 

NÃO PERCA A CONTINUAÇÃO DA PARTE 2 (O MÁGICO), NA PRÓXIMA SEXTA-FEIRA, DIA 04/09/2020.

 

Até breve!...

 

Sisi Marques


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

REALIDADE MÁGICA – LIVRO 1 – PARTE 1 – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

 


                                             REALIDADE MÁGICA

                                         PARTE 1

                      O CONTADOR DE HISTÓRIAS

 

Não posso revelar a identidade do protagonista desta história porque ele jamais perdoaria tal indiscrição. Desse modo, para evitar constrangimentos, usarei o nome Anastácio sempre que me referir a ele.


Tudo começou quando “Anastácio” estava sentado em um banco de jardim de uma praça pública, buscando as palavras certas para compor sua história. Naquela manhã, ele se sentiu embaraçado ao perceber que o homem de idade bastante avançada, sentado ao seu lado, o observava insistentemente. Cansado de ser o alvo daquele minucioso exame, ele parou de escrever e perguntou ao tal sujeito:

 

– Posso ajudá-lo de alguma forma?

 

O homem respondeu enigmático:

 

– Talvez possamos nos ajudar mutuamente.

 

Anastácio afirmou sem rodeios:

 

– Duvido muito. Peço-lhe a gentileza de me deixar em paz para que eu possa continuar o meu trabalho.

 

O homem permaneceu no mesmo lugar e continuou a encará-lo em silêncio. Anastácio, sentindo-se queimar por dentro, levantou-se. Perguntava-se como alguém poderia aparecer do nada e estragar completamente o seu dia. Parecendo ler os seus pensamentos, o homem disse:

 

– Eu não tenho nada a ver com a sua irritação e não estraguei o seu dia. É você quem estraga o seu dia todas as manhãs quando senta para escrever neste lugar estéril. Venha comigo para que eu possa mostrar-lhe um local mais adequado.

 

Anastácio sentou-se novamente antes de dizer:

 

– Não estou interessado. Por que não convida o otário sentado no banco em frente, que também estava escrevendo e agora parou para nos observar? Talvez ele tenha mais tempo e paciência para gastar com a sua intromissão.

 

Adivinhe só quem era o “otário sentado no banco em frente”? Acertou: era eu, Felizardo. Balançando a cabeça em sinal de desaprovação, o homem respondeu:

 

– Não. Já cheguei a pensar nele, mas receio que ainda não esteja pronto. Falta-lhe paixão, amor pelas histórias. Você, no entanto, precisa delas e as busca porque as ama: o seu coração respira histórias. Venha comigo. Você tem todo o tempo do mundo; mas, para mim, o tempo está acabando e se torna mais valioso a cada minuto.

 

Anastácio esquadrinhou o rosto daquele desconhecido que não media esforços para atraí-lo com sua fala mansa. Perguntou a si mesmo que mal haveria em segui-lo se ele não parecia representar perigo algum. Após breve e silenciosa reflexão, Anastácio aventurou-se a dizer:

 

– Está bem. Estou disposto a acompanhá-lo.

 

Exibindo um sorriso vitorioso, o homem disse:

 

– O carro está estacionado aqui perto; meu motorista nos levará até lá.

 

Após duas horas de viagem, o carro estacionou em frente a um terreno que pareceria abandonado se não fosse pela cerca, o portão, o banco e um chalé bem-cuidados. Quanto à terra, parecia seca, dura, imprópria a qualquer tipo de cultivo. Dando vazão à sua raiva e frustração, Anastácio afirmou:

 

– Se me trouxe aqui para me empurrar esta terra improdutiva, perdeu o seu tempo porque não costumo jogar fora o dinheiro que herdei do meu pai. A resposta é não. Não comprarei esta propriedade sem valor no meio do nada!

 

Aparentemente confuso pela inesperada reação, o homem disse:

 

– Não sou um vendedor e não estou tentando empurrar-lhe coisa alguma. Só lhe peço que inspire o ar deste lugar com o coração. Sinta como a atmosfera está repleta de histórias. Sente-se naquele banco. Feche os olhos. Concentre-se e atraia uma delas. Deixe-a entrar em seu coração para que ela possa lhe revelar o seu aroma e a sua delicada trama.

 

Anastácio já começava a odiar-se por ter se deixado enganar quando, de repente, algo inesperado aconteceu: uma deliciosa brisa envolveu o seu coração, e ele se sentiu preso num doce devaneio. Fragmentos de uma história nova aglutinaram-se em sua mente, e o seu único desejo era: dar-lhe vida. Sem hesitar, ele sentou no banco, abriu o caderno de anotações, apanhou a caneta do bolso e começou a escrever.

 

Quando Anastácio terminou de reunir os pedaços da história, leu-a prazerosamente e, só então, olhou ao redor e surpreendeu-se ao verificar que já era noite, e não havia nem sinal do homem que o trouxera ali. Caminhou até o chalé e teve outra surpresa: a dispensa estava cheia; e o asseio, a disposição dos móveis e a quietude daquele lugar pareciam convidá-lo a estabelecer-se ali por alguns dias.

 

Na manhã seguinte, uma nova e agradabilíssima surpresa deixou-o de boca aberta e olhos arregalados: bem próximo ao banco, havia um canteiro de terra fofa e, nessa terra macia e úmida que aparecera do nada, despertara uma flor. Aproximando-se da flor, Anastácio pôde sentir sua fragrância e ficou extasiado ao perceber que era o mesmo aroma da brisa que o envolvera antes que ele começasse a escrever a história. Em seu coração, ele guardava a certeza de que a sua história dera origem àquele canteiro e àquela flor. Novas histórias viriam, e mais flores nasceriam naquele jardim.

 

Os dias se passaram velozmente, e as manhãs traziam as flores, frutos da inspiração contida nas histórias. Anastácio jamais se sentiu tão bem em toda a sua vida. Pensava estar sonhando e receava acordar. Cada flor possuía uma fragrância semelhante ao aroma da brisa que o envolvia antes de começar a escrever determinada história, e esta parecia ser a parte melhor: cada flor representava uma história, cada flor era única, e ele as amava. Como poderia deixá-las se desejava ardentemente que se multiplicassem? Lembrou-se do homem e sentiu remorso por tê-lo tratado tão mal. Precisava desculpar-se e decidiu ir ao cartório mais próximo para verificar a quem pertencia aquela propriedade.

 

Mais surpresas aguardavam-no quando ele chegou ao cartório pedindo informações sobre o misterioso proprietário. Apanhando uma pasta com vários documentos, o funcionário respondeu:

 

– A propriedade atualmente pertence ao “Sr. Anastácio”.

 

Você já deve ter imaginado que não foi esse o nome que o funcionário do cartório mencionou. Na escritura da propriedade, estava escrito o seu nome verdadeiro. O funcionário do cartório não pareceu surpreso ao ouvi-lo dizer:

 

– Certamente houve um terrível engano. A propriedade não é minha; mas, sem sombra de dúvida, eu gostaria de comprá-la. Como posso entrar em contato com o proprietário?

 

Pacientemente, o funcionário do cartório explicou:

 

– Se o senhor é o Sr. Anastácio, basta apresentar-me um documento que comprove sua identidade e assinar aqui, para que eu possa entregar-lhe as chaves e a escritura. Não lhe será cobrada taxa alguma, porque todas as despesas já foram pagas no ato da doação. Caso o senhor não seja o Sr. Anastácio e esteja interessado em adquirir a propriedade, deverá entrar em contato com o Sr. Anastácio, porque só ele poderá autorizar a venda.

 

Com as mãos trêmulas, enquanto mostrava seu documento ao funcionário e preparava-se para assinar a escritura, Anastácio murmurou:

 

– Eu não compreendo como posso ser dono da propriedade se nada paguei por ela.

 

Bem-humorado, o funcionário exclamou:

 

– É realmente impressionante! Já ouvi dizer, e os documentos comprovam que o atual doador também não pagou nada por ela, e nem mesmo os dois proprietários anteriores. Essa propriedade enorme é sempre doada por razões desconhecidas.

 

Despretensiosamente, Anastácio comentou:

 

– Ela não é tão grande assim. Trata-se apenas de um terreno, aparentemente sem valor, com um chalé. Para mim, no entanto, ela tem valor inestimável.

 

Discordando respeitosamente, o funcionário balançou a cabeça para os lados, antes de dizer:

 

– Talvez o senhor não tenha tido a oportunidade de conhecer a propriedade como um todo. Além desse terreno que mencionou, existem outros sem construção alguma. Mas a satisfação maior virá de três terrenos cujas casas foram cercadas por agradáveis jardins. Se desejar, poderei acompanhá-lo até lá para lhe mostrar toda a propriedade. De qualquer modo, juntamente com a escritura, estou lhe entregando a planta atualizada e o molho de chaves.

 

Um pouco atordoado pela avalanche de surpresas, Anastácio disse:

 

– Muito obrigado, mas creio que não será necessário. Eu só gostaria de poder agradecer ao meu benfeitor. Não teria ele deixado algum endereço ou telefone para contato?

 

O funcionário, solícito, apresentou um cartão e desculpou-se:

 

– Perdoe-me o esquecimento. Ele deixou este cartão com um número de telefone para que lhe fosse entregue.

 

Com o coração descompassado, Anastácio perguntou:

 

– Eu poderia usar o telefone?

 

O funcionário consentiu, e Anastácio segurou o fone e discou o número com as mãos trêmulas. Percebeu logo que a pessoa do outro lado da linha não conhecia o homem que lhe entregara aquele maravilhoso presente. Mas, ainda assim, ficou curioso em descobrir qual era a relação entre os dois. Certamente algum motivo haveria para aquele número de telefone ter chegado às suas mãos. Precisava desvendar o mistério e, para isso, marcou um encontro com o homem que, sem saber o que pensar, sem saber o que dizer, o ouvia pacientemente.

 

Foi com imenso pesar que Anastácio, ao sair do cartório, em vez de retornar ao seu refúgio, dirigiu-se à sua casa, que ficava próxima à praça na qual ele marcara o encontro para a manhã seguinte.

 

Anastácio, ao acordar, sentiu falta da atmosfera que envolvia aquele lugar mágico. Queria voltar o mais rápido possível, mas primeiro teria que se desvencilhar daquele compromisso insípido. Deveria estar curioso para saber quem o aguardava próximo ao chafariz da praça; entretanto, o único sentimento que desabrochava em seu coração era a necessidade de respirar e compor novas histórias. Depois desse encontro, mudar-se-ia definitivamente para aquele lugar.

 

Por volta das 9h, Anastácio chegou à praça e sentou-se ao meu lado no banco próximo ao chafariz. Ele olhava em minha direção com o semblante carregado e só faltou pedir-me que deixasse o banco e fosse sentar em qualquer outro lugar. Minutos depois, comentou:

 

– Eu espero alguém. E você, o que faz aqui sem o seu caderno de anotações?

 

Uma pergunta direta merecia uma resposta igualmente direta:

 

– Também espero alguém.

 

Após consultar o relógio várias vezes, ele teceu novo comentário:

 

– Uma namorada, eu suponho. É por esse motivo que evito as mulheres. Odeio esperar, e elas parecem se divertir ao nos deixar esperando.

 

Foi a minha vez de dizer:

 

– Antes estivesse aqui aguardando a chegada de uma bela jovem. Receio ter sido vítima de um trote. Um sujeito maluco ligou para a minha casa ontem, perguntando se eu conhecia um senhor que o levou a uma propriedade que ficava a duas horas daqui. Tirando isso, não falava coisa com coisa, e eu não consegui entender mais nada.

 

A expressão inesperada em seu rosto deixou-me preocupado. Perguntei-lhe:

 

– O que há? Não está se sentindo bem?

 

Ele sorriu antes de perguntar:

 

– Qual é o número do seu telefone?

 

Tudo começou a fazer sentido, e eu exclamei:

 

– Não me diga que foi você quem ligou e marcou este encontro!…

 

Anastácio revelou:

 

– O homem que você afirma não conhecer pediu que me entregassem o número de seu telefone quando eu fosse ao cartório. Ele certamente esperava que nos encontrássemos por alguma razão. Ouça, engana-se ao dizer que não o conhece. Você já o viu nesta praça há alguns dias enquanto conversávamos. Você até mesmo parou de escrever para nos observar. Não se lembra?

 

Eu olhava para ele em busca das palavras que usaria para não ofendê-lo ao ter que desmenti-lo. Finalmente fui obrigado a dizer:

 

– Eu parei de escrever na última vez em que pude observá-lo fazendo anotações, porque achei interessante o modo como você atuava para caracterizar melhor o seu personagem. E posso afirmar que não havia ninguém ao seu lado: era apenas você e a sua imaginação.

 

Com o olhar incandescente, ele exclamou:

 

– Está zombando de mim!

 

Desconcertado, perguntei:

 

– Por que eu faria isso? Ouça, eu moro aqui perto. Gostaria de ir à minha casa para que pudéssemos conversar com mais privacidade?

 

Balançando a cabeça negativamente, ele disse:

 

– Não. Você irá à minha casa para que eu possa provar-lhe que não estou louco. Venha, posso mostrar-lhe as chaves, a planta, a escritura… Eu não imaginei tudo aquilo. Não posso ter imaginado!

 

Acompanhei Anastácio à sua casa e pude verificar que a planta e a escritura eram autênticas. Ele estava satisfeito, e o seu entusiasmo era tão grande que ele parecia uma criança narrando o que lhe acontecera nos últimos dias.

 

Anastácio pediu à empregada que nos servisse um lanche e, depois, conduziu-me à garagem, para que ele pudesse tirar o carro para levar-nos à propriedade. Aquele era o início de uma grande e sincera amizade. Quando chegamos ao terreno, o meu único desejo era contemplar as poucas flores que ele afirmava terem desabrochado num canteiro recém-formado. E lá estavam elas! Eram lindas, perfeitas! E cada uma possuía um perfume diferente, sedutor!

 

Deliciando-se com o meu entusiasmo, Anastácio disse:

 

– Você também poderá criar as suas próprias flores e ajudar-me a embelezar o jardim. Basta abrir o seu coração para a atmosfera deste lugar e inspirar uma história. Lembre-se: você precisa respirar com o coração.

 

Eu estava feliz. Sentia-me leve e continuava a rir quando algo muito estranho aconteceu: um calor agradável envolveu o meu coração, que pareceu abrir-se como uma flor para acolhê-lo. Na minha mente, partes de uma história, como se fossem peças de um enorme quebra-cabeça, começavam a se juntar. Retirei do bolso um bloco de anotações e uma caneta, sentei no banco e comecei a escrever. Foi um momento perfeito. O tempo passou com a rapidez do vento e, quando dei por mim, já era noite.

 

Um aroma irresistível vinha do chalé e me convidava a entrar. Quando apareci à porta, Anastácio disse:

 

– Entre e sirva-se. Você estava tão concentrado, que eu não quis incomodá-lo e vim aproveitar o tempo de outra forma. Perdoe-me se a refeição não estiver do seu agrado.

 

Lavando as mãos, comentei:

 

– Se a refeição estiver tão boa quanto o cheiro!… Não imaginei que gostasse de cozinhar.

 

Sentando-se à mesa, Anastácio, procurando conter o seu entusiasmo, disse:

 

– E não gosto, mas precisava ocupar-me de algum modo. Conte-me como foi a sensação de respirar sua primeira história neste lugar.

 

Eu respondi sorrindo:

 

– Plena. Não existe outra forma de descrevê-la. Ouça, quando chegamos, eu tomei a liberdade de contar as flores. Você acredita que amanhã aparecerá mais uma?

 

Ele afirmou:

 

– Certamente. E você estará aqui para vê-la. Está muito tarde para voltarmos. Amanhã, se você não tiver outro compromisso, eu gostaria que caminhasse comigo pela propriedade. Precisamos visitar os outros jardins. Você já se perguntou qual será a duração das flores?

 

Respondi:

 

– Para ser sincero, não. Mas posso arriscar um palpite.

 

Anastácio incentivou-me a continuar:

 

– Por favor, fale. Nada do que disser parecerá tolice. Somos amigos, e amigos têm a liberdade de dizer o que pensam. A propósito, daqui a uma semana haverá o Encontro Anual dos Contadores de Histórias. É uma boa ocasião para nos reencontrarmos. Só lhe peço sigilo, porque não podemos permitir que esta história venha à tona. Se algum dia você quiser contá-la, deverá ser como algo fictício; e, por favor, nunca mencione o meu verdadeiro nome. Se as pessoas acreditarem que é uma ficção, jamais procurarão o lugar. Agora me responda qual é o tempo de vida das flores que estamos ajudando a desabrochar.

 

Aventurei-me a dizer:

 

– Cada flor representa uma história. As histórias só morrem quando são esquecidas. Dessa forma, o esquecimento é a única erva daninha capaz de comprometer a saúde das flores. É o nosso dever contar as histórias para que elas não sejam esquecidas e as flores permaneçam sempre viçosas.

 

Após alguns minutos de reflexão, Anastácio afirmou concordar com a minha teoria. O seu semblante estava sereno, e ele parecia satisfeito. Nada pode ser mais prazeroso a um contador de histórias do que se tornar o protagonista de uma história fascinante. Eu também estava felicíssimo. Talvez eu nem precisasse dizer que, na manhã seguinte, contemplei a minha flor com um prazer descomunal. É como Anastácio costumava dizer: “Só mesmo estando lá para saber como é agradável e revigorante respirar e cultivar histórias!”

 

FIM DA 1ª PARTE (O CONTADOR DE HISTÓRIAS) 

DE "REALIDADE MÁGICA – LIVRO 1”.

 

Sisi Marques

21/08/2020

 

Não perca a 2ª Parte (O Mágico) de “REALIDADE MÁGICA – LIVRO 1”, na próxima 6ª feira, dia 28/08/2020.

Até breve!...

Sisi Marques